Pioneiras

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23 min readMar 10, 2024

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Inspirado nas antigas agências fotográficas, como a F4 (1979–1991), criada por Nair Benedicto, Ricardo Malta e os irmãos Delfim e Juca Martins, um antigo desejo do Gafieiras começava a tomar forma em 2009: um coletivo de fotógrafos para gravar em imagens a música feita no Brasil. Seu estatuto informal definia encontros semanais para debater ideias, ações e formas criativas de difusão. O objetivo era a construção de um acervo vivo, múltiplo, intenso e sensível.

O primeiro (e único) trabalho mirou o Dia Internacional da Mulher como oportunidade e necessidade. Apropriado de senso histórico, o grupo concordou em ir a campo fotografar artistas que iniciaram suas carreiras entre os anos 1940 e 1960. Dos nomes sobre a mesa estavam os de Ademilde Fonseca, Inezita Barroso, Carmélia Alves e Alaíde Costa, como também os de duas rainhas do rádio, Angela Maria e Marlene, infelizmente não fotografadas.

Ao republicar este conjunto de fotos e textos 15 anos depois de seu lançamento, renova-se o compromisso do Gafieiras em captar quem faz e vive a música no país; e volta à pauta a formação de um novo grupo, agora com equidade de gênero. Reforça-se, ainda, que há muito o que se fazer e lutar para que a realidade de todas as mulheres no Brasil seja diferente: de maior representatividade política, livre da violência doméstica e da submissão ao homem, e donas de seu próprio corpo, destino e prazer. E, como parte da sociedade, a música brasileira é e foi testemunha, porta-voz e protagonista dessas desigualdades e, em muitos casos, tragédias. Que o futuro seja mais livre, respeitoso e inclusivo.

São Paulo, março de 2024.

Arte do projeto 'Pioneiras' criada por Daniel Almeida.

Antes de tudo, a música

A exposição fotográfica Pioneiras é uma homenagem à música brasileira e, claro, às mulheres. Focaliza 13 artistas de diferentes gêneros musicais que foram precursoras em assumir o palco como meio de expressão pessoal e artística entre os anos 1940 e início dos 60. Mulheres que romperam as fronteiras firmadas pela sociedade da época, que as condenavam ao universo doméstico ou à determinadas atividades profissionais. Mulheres que materializaram o desejo de serem artistas num meio dominado pelos homens e pelo machismo. Mulheres que se desenvolveram para que as gerações surgidas a partir dos anos 1960/70 enfrentassem um trânsito menos congestionado para abordar temas caros da perspectiva feminina.

Pioneiras também marca o nascimento deste grupo de sete fotógrafos profissionais que ainda não foi batizado oficialmente, e que se dedica a registrar e difundir imagens da música brasileira contemporânea. Filiado editorialmente ao Gafieiras, o grupo tem na difusão não-convencional a chave para que este conteúdo fotográfico ultrapasse as galerias e os veículos especializados. A música brasileira multicolorida e sincrética tem de circular pelo maior número de pessoas. Assim, além de seu site oficial, a exposição Pioneiras estará nas mídias indoor nos metrôs (TV Minuto) e ônibus (TVO) da capital paulista, além dos 150 bares de São Paulo e do Rio de Janeiro que integram a rede Cineboteco. Durante um mês, a partir deste 8 de março de 2009, cerca de 2 milhões de pessoas por dia terão a companhia de Inezita Barroso, Alaíde Costa, Ademilde Fonseca, Dóris Monteiro e outras nove mulheres que, em plena atividade artística, toparam ser clicadas em ambientes além-palco. Atemporal, esta exposição é um convite fotográfico para curtir e descobrir as histórias dessas 13 pioneiras que, antes de tudo, escolheram a música para viver.

São Paulo, março de 2009.

ADEMILDE FONSECA . Tônico para todos os humores

Foi em Santa Cecília, bairro do centro paulistano, e em janeiro que tudo se acertou. Já com a pauta do primeiro trabalho definido, o grupo comprovou em uma de suas reuniões a necessidade de pelo menos um fotógrafo ir ao Rio de Janeiro. Não havia como escapar: ali moravam importantes mulheres que completavam nossa escalação.

Assumi a missão de correr para a ex-capital federal e, num fim de semana, fotografar quatro artistas. Uma delas, e a primeira, era Ademilde Fonseca.

Depois de uma noite no ônibus e com a muda de roupas depositada num hotel no Largo da Carioca, peguei um táxi para Copacabana, onde a Rainha do Choro Cantado mora. Sorridente e falante, Ademilde não aparenta os 87 anos de vida. Posou em seu apartamento, contou algumas histórias, e com óculos de sol no rosto, estampou uma das paredes da recepção de seu prédio.

A vitalidade e firmeza de Ademilde mostram a felicidade mesmo para uma artista que tem sua projeção nos dias de hoje menor do que sua obra merece. Como um tônico revigorante, a intérprete que nunca reduziu a marcha ao cantar “Brasileirinho”, injetou ainda mais disposição ao Pioneiras. E combinamos: no domingo de manhã nos veríamos no aniversário de sua amiga, a contemporânea Carmélia Alves. (por Jefferson Dias)

>> Potiguar de Macaíba, Ademilde Fonseca (1921–2012) interpreta samba e baião, mas há mais de 50 anos é reconhecida como Rainha do Choro Cantado. Um de seus registros sonoros de maior êxito foi “Brasileirinho”, de Waldir Azevedo e Pereira da Costa, em 1950.

A cantora Ademilde Fonseca clicada em seu apartamento em Copacabana, Rio de Janeiro, por Jefferson Dias.

ALAÍDE COSTA . No palco e na vida

Uma primeira conversa com Alaíde Costa, que serviria para acertar os detalhes da sessão de fotos, foi desmarcada por um compromisso inadiável: havia conseguido um horário com a cabeleireira que frequenta há 18 anos, responsável por fazer suas famosas tranças, marca registrada da artista. Após um momento de decepção, surge a idéia: mas, então, por que não fotografá-la durante esse momento tão único, tão íntimo, tão representativo? Sem cerimônias, Alaíde aceitou a proposta e lá fui eu.

Em uma pequena casa no bairro paulistano do Rio Pequeno, os cabelos de Alaíde Costa se transformaram. No entanto, o lugar não tem o glamour e o luxo que se poderia imaginar para alguém que já pisa os principais palco do Brasil há mais de cinco décadas. Ali, as paredes estão desgastadas, o espelho está sobre um armário improvisado e as pessoas passam concentradas em seus afazeres cotidianos.

Ironicamente, o que viria a ser a sessão de fotos oficial teve que ser cancelada. Alaíde Costa torcera o pé ao cair da escada de sua casa. Soube disso quando cheguei à casa da artista para a prometida conversa em que acertaria os detalhes. No entanto, dessa vez, não lamentei a mudança de planos. Fiz mais algumas imagens, claro, mas com a tranquilidade de quem sabia que o trabalho já estava concluído. Sorridente, apesar do transtorno de não poder andar, Alaíde serviu um café, conversou, sentou-se ao piano em que compõe suas músicas e esbanjou simpatia. Mais uma vez, ela estava à vontade, simples, despretensiosa, com a serenidade de quem não faz da vida um grande palco, mas faz do palco a sua vida. (por João Correia Filho)

>> Cantora e compositora carioca, Alaíde Costa (1935) foi convidada por João Gilberto para participar de shows de bossa nova no fim dos anos 1950. Sua voz sussurrada tatuada o estilo e ajudou a firmá-lo na capital paulista. “Onde está você?” (Oscar Castro-Neves e Luvercy Fiorini), de 1964, é um de seus sucessos.

A cantora e compositora Alaíde Costa captada pelas lentes de João Correia Filho.

AS GALVÃO . Mais um à mesa

Quando recebi a tarefa de fotografar As Galvão, a primeira coisa que passou em minha cabeça foi a imagem de minha avó. De pronto recordei dela ouvindo sua música favorita cantada pela dupla: “A mesa”. Meu primeiro encontro com as irmãs aconteceu na Rádio Record, na Barra Funda, em São Paulo. Lá, esbanjaram alegria e simpatia. Levaram-me para o pátio da emissora e qual música começaram a tocar e cantar? “A mesa”! Foi difícil segurar as lágrimas e manter a concentração

Já no estúdio, em pleno programa ao vivo, brincaram comigo e disseram aos ouvintes que naquele dia elas contavam com “um paparazzo exclusivo”.

A sessão de fotos não parou na rádio e me convidaram para almoçar. Arroz, feijão e carne de panela com batata. A casa da Mary é uma delícia; tem jeitinho de mãe. Inclusive, a matriarca Dona Maria estava lá. E este caseiro sintetiza a vida de Mary e Marilene e mais uma revivo a canção: “A mesa enorme / As crianças em volta / Meu pai, minha mãe, minha vó, meus irmãos”. (por Ricardo Ferreira)

>> As Galvão começou a cantar em 1947, ainda meninas, e foi a dupla sertaneja feminina mais antiga em atividade no Brasil: 74 anos. Tem mais de 300 músicas gravadas, entre elas o sucesso “Beijinho doce”. Marilene Galvão morreu em 2022.

As irmãs Marilene e Mary fotografadas por Ricardo Ferreira nos estúdios da Rádio Record, em São Paulo.

ÁUREA MARTINS . O fotógrafo não existe

Quando ainda o time de artistas do Pioneiras estava sendo montado, Herminio Bello de Carvalho sugeriu Áurea Martins. Com mais de 45 anos de carreira, a cantora tem apenas três discos, o mais recente, Até sangrar (2008), produzido pelo incansável poeta carioca.

De Copacabana, onde havia fotografado Ademilde Fonseca de manhã, voei para o Catete, onde Áurea reside. De todas as artistas que eu encontraria no Rio, ela era única que tinha um espetáculo no mesmo dia da sessão de fotos. Nada mais instigante do que acompanhá-la em seu apartamento até sua chegada no palco do Centro Cultural Banco do Brasil. Do encontro, às 13h, até o início do show, às 19h, somente desgrudei da artista durante as trocas de roupa.

Receptiva e envolvida com o espírito do projeto, Áurea esqueceu de mim durante essas mais de seis horas, quesito ideal para qualquer fotógrafo. Aí testemunhei esta cantora da noite que venceu em 1969 a Grande chance, concurso criado por Flávio Cavalvanti (1923–1986), esparramada no chão lendo jornal, conversando ao telefone, tomando café e se aquecendo no camarim do teatro onde cantou para Herminio e para dezenas de privilegiados. (por Jefferson Dias)

>> Carioca, Áurea Martins (1940) começou a cantar na noite e em festivais na década de 1960. Desde então, dividiu o palco com nomes como Djavan, Emílio Santiago, Alcione e Cristóvão Bastos, até gravar em 2003 seu primeiro CD, que uniu MPB e samba.

Do apartamento no Catete ao palco do Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro: a cantora Áurea Martins fotografada por Jefferson Dias.

CARMÉLIA ALVES . O instante tricolor

Domingo. Aniversário de Carmélia Alves. E para comemorar os 86 anos da rainha do baião, uma festa especial. Um grande almoço com pocket-show permanente dos amigos-artistas realizado no Instituto Cravo Albin, na Urca.

Transitando anônimo pelos convidados, minha presença somente se tornou relevante e oficial quando Ademilde Fonseca me avistou e me abraçou. Como havia anunciado, não poderia faltar no aniversário da amiga.

Diferentemente das outras artistas que havia fotografado no Rio, clicar Carmélia não seria tarefa fácil. Era um ambiente incomum para a proposta do projeto; dificilmente conseguiria dispor de mínimos 40 minutos junto à cantora. Ali a festa era sua e todos faziam questão da proximidade territorial com a aniversariante.

No entanto, assim que a refeição começou a ser servida, e com o auxílio de sua sobrinha e do anfitrião Ricardo Cravo Albin, roubei Carmélia por uns instantes. Antes dos cliques, passou por uma mesa e pegou um enfeite. E nem mesmo nas poucas fotos que consegui capturar, Carmélia estava sozinha. Fez questão de ser fotografada com a bandeira do seu time do coração. Aí, nada mais justo. (por Jefferson Dias)

>> A carioca Carmélia Alves (1923–2012) foi coroada por Luiz Gonzaga como Rainha do Baião, mas também eternizou marchas e sambas desde o fim dos anos 1930. Um de seus grandes sucessos foi gravado em 1950, o baião “Sabiá na gaiola”, de Hervé Cordovil e Mário Vieira.

A cantora Carmélia Alves fotografada por Jefferson Dias no Instituto Cravo Alvin, no Rio de Janeiro.

CLAUDETTE SOARES . De bem com o passado

A ideia era fotografá-la em algum canto que tivesse uma relação emocional com sua carreira. Ela mesma sugeriu a Pizzaria Veridiana e a área de lazer do edifício onde mora, em São Paulo.

Com sorriso estampado e paciência para posar durante mais de três horas naquela tarde quente, a sessão com a carioca e precursora da bossa nova em São Paulo foi recheada de histórias e lembranças: algumas sobre a rotina doméstica e outras sobre o início de carreira, os shows e a movimentação nos bares badalados da época.

Um deles era o antológico João Sebastião Bar, hoje a famosa pizzaria entre as ruas que a batiza e a Maria Antonia. Ali, enquanto era fotografada, Claudette resolvia uma pendenga. A memória afetiva não engolia o forno no lugar do palco onde cantou sobre o piano (sua marca registrada) ao lado de outras bossas na década de 1960.

A autorização da síndica para fotografá-la nas áreas comuns do edifício foi mera formalidade. A síndica, fã de Claudette, nunca lhe negaria esse pedido. Aos 72 anos subiu e desceu as muretas que cercam o jardim como uma menina. Sorriu espontaneamente, mas também encenou repetindo que não tinha jeito pra aquilo. Bobagem! Claudette desfilou elegância em seu inseparável salto alto, adotado lá trás para aumentar sua estatura em uns tantos centímetros. Mera vaidade. Na música nunca precisou deste artifício. (por Fernando Angulo)

>> A carioca Claudette Soares (1937) é uma das responsáveis ​​pela consolidação da bossa nova em São Paulo no início da década de 1960. Lançou artistas como Gonzaguinha e Taiguara, e seu repertório já contemplou música de protesto, romance, bossa nova e MPB.

A cantora Claudette Soares fotografada por Fernando Angulo nas dependências da pizzaria Veridiana (ex-João Sebastião Bar) e do prédio onde mora.

CLAUDIA MORENA . Morena ou moreno?

Claudia Morena vive numa cobertura em Campinas, cidade que adotou como sua há 37 anos. Adora Campinas. Nascida em Cabo Frio, no estado do Rio de Janeiro, ela se mudou para lá e não saiu mais. Mora no último andar de um edifício e, de lá de cima, tem uma visão privilegiada da cidade.

É nesse cenário que Claudia se coloca para as fotos. Primeiro por estar em sua casa, perto de seu marido, de suas coisas e de suas duas cachorras, Babalu e Pipoca. E também porque já se acostumou com cliques e outros melindres do sucesso. Faz pose, vira o rosto, pergunta se está bom, expõe sua beleza. A moça encantadora que começou sua carreira em meados dos anos 1950 ainda preserva os traços belos de quem viu a vida passar de forma musical.

À vontade ela também confessa que é avessa à Internet e computadores. No entanto, brilha virtualmente: possui uma comunidade no Orkut, há mais de 60 vídeos no Youtube e centenas de páginas com o verbete Morena. O curioso é que pela Internet se nota uma confusão com seu nome artístico: existe tanto Claudia Morena quanto Moreno.

“Sou de uma época que quase ninguém usava o nome real. Quando comecei minha carreira, me disseram que eu seria Claudia Morena graças à minha pele. Mas quando fui me registrar na Ordem dos Músicos, houve um engano e escreveram Moreno”, explica a artista. Hoje, brinca com a pequena confusão e ratifica: “sou Claudia Morena”. Para quem conhece a vida e a obra da artista, nada disso importa. (por João Correia Filho)

>> Claudia Morena (1932–2021) iniciou sua carreira nos anos 1950 ao gravar “Só saudade”, de Tom Jobim. Lançou Zé Kéti (“Voz do morro” no filme 'Rio 40 graus'), participou do disco inaugural de Paulo Vanzolini ('Onze sambas e uma capoeira') e foi uma das primeiras cantoras a cantar bossa nova fora do Brasil.

A cantora Claudia Morena posa para João Correia Filho na cobertura de seu apartamento em Campinas.

DONA INAH . Paixões ponto a ponto

Cheia de simplicidade e alegria, Dona Inah me recebeu numa manhã ensolarada de quinta-feira, logo após o Carnaval. Com o sorriso largo e muita simpatia, disse: “Você vai tomar um cafezinho comigo hoje! Já estou fazendo”. O astral de Dona Inah em casa é o mesmo que leva e encanta nos palcos. Preparou-se para fazer as fotos. Arrumou-se com muita vaidade, e colocou até perfume. Queria mostrar nas fotos a sua imagem autêntica: alegria e descontração.

Para a sessão fotográfica, posou em sua sala, onde passa momentos em família. Decorado com alguns quadros que marcam momentos de sua carreira nos quatro cantos do mundo, o lugar é aconchegante e discreto. Também mostrou seu quarto de costuras. Ali é o seu outro mundo. Sentada atrás de uma máquina Singer, revelou que o ofício de coser é uma paixão. Claro, como o samba. (por Ernesto Rodrigues)

>> Nascida em Araras (SP), Dona Inah (1935–2022) começou a cantar profissionalmente nos anos 1950 como crooner de orquestras, que alternava com o trabalho de babá, doméstica e empregada doméstica. Convidada a voltar aos palcos em 2002 por Heron Coelho, intérprete de sambas já lançou dois discos, ‘Divino samba meu’ (2004) e ‘Olha quem chega’ (2008).

A cantora Dona Inah recebeu em sua casa o fotógrafo Ernesto Rodrigues.

DÓRIS MONTEIRO . Telefone para Dóris

Ela estava na casa de amigas quando recebeu a ligação e o convite para participar do Pioneiras. Pediu que retornasse o telefonema às 22h do mesmo dia, quando então estaria em casa. Poucos minutos após o combinado, Dóris ouviu atentamente as explicações sobre o projeto e topou, mas relutou sobre o horário. Não queria ser fotografada pela manhã por temer a cara amassada de uma noite de sono, que não poupa nem mesmo uma rainha do rádio.

A produtora do projeto também havia sugerido fotos pela orla da praia, mas Dóris negou. Disse que já não se expõe tanto ao sol. No auge da mocidade passava horas nas areias de Copacabana, que somente eram interrompidas quando da praia avistava a toalha vermelha exposta na janela do apartamento onde morava com os pais. Era o código criado entre ela e a mãe para que pudesse atender os telefonemas de trabalho.

Entre a indecisão sobre local e hora, Dóris abriu as portas de sua casa em reforma. Pediu uma foto na mesma posição em que estava no porta-retrato exposto na sala. Era o antes e o depois da bela cantora que iniciou carreira no rádio aos 17 anos de idade.

Somente em São Paulo percebi a cor da sua roupa e a janela que forneceu luz para estas fotos. Era como se, em vez de ser chamada da praia, Dóris era quem abria a janela e convidava o público para conhecer sua história e música. (por Jefferson Dias)

>> Cultuada pelas novas gerações, a cantora carioca Dóris Monteiro (1934–2023) iniciou sua carreira em 1951. Intérprete privilegiada de samba e bossa nova, foi uma das primeiras a gravar Tom Jobim. Entre seus sucessos, “Coqueiro verde” (Roberto e Erasmo Carlos) e “É isso aí” (Sidney Miller).

A cantora Dóris Monteiro fotografada em seu apartamento no Rio de Janeiro por Jefferson Dias.

EUDÓXIA DE BARROS . Música para silêncio

A rua onde mora Eudóxia de Barros parece saber que ali vive uma pianista. Calma e tranquila, pode-se ouvir até pássaros cantando. Nem dá para acreditar que se está a poucos metros da agitada avenida Sumaré, zona oeste de São Paulo.

Eudóxia também é assim: calma e tranquila. Vamos para sua sala de estudos. Um pequeno cômodo nos fundos de sua casa. Lá, pilhas de livros e partituras dividem o espaço de três metros quadrados com três pianos. Um deles é um mítico Steinway & Sons de cauda, lindo e enorme.

Com a maior simplicidade, a pianista que um dia trocou uma carreira de êxito internacional para levar a música erudita Brasil afora, pergunta: “O que você quer que eu toque? Mozart, Chopin, Ernesto Nazareth?”. Finjo que tudo isso é simples e digo com uma falsa naturalidade: “Pode ser algum estudo do Chopin!”. Mergulho no som das notas tecladas pela pianista, e as fotos saem com a mesma serenidade de Eudóxia. (por Otávio Valle)

>> A pianista paulistana Eudóxia de Barros (1937) é há décadas um dos grandes nomes da música erudita brasileira. Já se apresentou nas principais salas do mundo e possui mais de 30 discos gravados.

A pianista Eudóxia de Barros fotografada por Otávio Valle em sua residência na zona oeste paulistana.

INEZITA BARROSO . Não é que você veio mesmo, menino!

Eu já havia fotografado Inezita Barroso outras vezes, pela TV Cultura. Mas agora era diferente.

A locação, a Casa de Caboclo, no Parque da Água Branca em São Paulo, foi escolhida por ela, que não precisou revelar o motivo óbvio. A novidade foi descobrir que a “musa da intelectualidade dos anos 1950” frequentava o parque desde seus 10 anos de idade. Entre acenos, olás e abraços deixados pelo caminho, Inezita falou sobre Carmen Miranda, Mário de Andrade, e a paixão pela piscina, além de se encantar com o gingado de um galinha caipira que corria pelos canteiros.

Dois dias depois, dia do seu 84º aniversário, fui ao Teatro Franco Zampari, onde é gravado o Viola minha viola, programa semanal há quase 30 anos no ar. “Não é que você veio mesmo, menino!”, falou ao me ver. Pediu para esperar. Esperei. Mas preferi falar direto com o produtor do programa que, sem pestanejar, afirmou que não ia rolar. Vencido pela minha retórica, voltou do camarim com o meu passe livre. “Tá com moral, hein, moleque!?” E assim fiquei, mais uma vez, na sombra de Inezita.

Chegada a hora, agradeci a oportunidade e me despedi. “Você me fotografa esses dois dias e vai embora sem comer um pedaço de bolo do meu aniversário?”, bronqueou sorrindo. Tinha como negar? (por Renato Nascimento)

>> Cantora, atriz, professora e apresentadora do 'Viola, Minha Viola', da TV Cultura, Inezita Barroso (1925–2015) é há mais de 50 anos uma das embaixatrizes da vida do caipira. Entre os clássicos que perpetuou estão “Lampião de gás” e “Marvada pinga”. Foi a primeira a gravar “Ronda”, de Paulo Vanzolini, em 1953.

A cantora, apresentadora e pesquisadora Inezita Barroso fotografada na Casa de Caboclo, no Parque da Água Branca, em São Paulo, por Renato Nascimento.

MÁRCIA . Modéstia feita à mão

Atrás de uma grande mulher, tem sempre um grande homem. E assim que eu e Ricardo Ferreira chegamos em sua casa, Márcia servia almoço para o marido, o irreverente locutor esportivo Silvio Luiz. Logo depois, divertiu-se com os passarinhos que ficam na sala, e somente então subimos as escadas para clicar no ateliê.

No começo da conversa, a artista já me advertiu: “Eu sou intérprete, não cantora! Cantora é quem segue a partitura. Eu interpreto”. Márcia cumpriu como ninguém seu papel. Imortalizou nada menos que “Ronda”, de Paulo Vanzolini, e “Eu e a brisa”, de Johnny Alf. Impossível pensar nestas canções sem a voz de Márcia.

Mas hoje ela está mais calma que uma brisa e muito menos ronda a cidade noite afora. Márcia emprega seus dons artísticos em trabalhos manuais. No enorme ateliê que montou em sua casa, faz álbuns, caixas, porta-trecos, agendas e porta-cds. Tudo de maneira artesanal e com material reciclado. Um trabalho bonito e impecável, que já rendeu até encomendas de grandes empresas. No fim da sessão fotográfica, perguntei sobre a carreira musical. Ela brincou: “Não tenho feito muita coisa. Tudo que eu fiz na música foi no século passado. Neste século somente a homenagem aos 100 anos do Cartola”. [ N.E. Show e disco com Elton Medeiros, arranjado por Théo de Barros e produzido por Pelão ] Só? É modéstia. (por Otávio Valle)

>> Nascida em São Paulo, Márcia (1943) começou ainda adolescente como cantora da Orquestra de Erlon Chaves, cantou em casas noturnas, participou de festivais na década de 1960. Firmou-se como uma das melhores intérpretes de Johnny Alf, lançou três álbuns marcantes com Eduardo Gudin e Paulo Cesar Pinheiro e, com Elton Medeiros, homenagearam Cartola em show e disco.

A intérprete Márcia fotografada em seu ateliê por Otávio Valle.

MARICENNE COSTA . A conta, por favor!

O encontro foi rápido. Como também foi o agendamento da sessão fotográfica. Graças a um amigo que tinha seu telefone, a produção do Pioneiras chegou a uma das últimas artistas fotografadas.

E foi nessa urgência que acompanhei Maricenne Costa até à Galeria Metrópole, no centro da capital paulista, onde ficavam bares e boates de todos os sabores, inclusive a primeira sede d’O Jogral (1964–68), casa fundada pelo compositor Carlos Paraná e que abrigou nomes como Paulo Vanzolini e Martinho da Vila e serviu de maternidade para o nascimento do selo Marcus Pereira anos depois. Enquanto fotografava, tomava um café e tentava driblar o volume do grupo de samba que fazia a vez naquela tarde, ouvi algumas de suas histórias fomentadas pela Galeria e pela bossa nova que participou ativamente naqueles anos.

Dali caminhamos para o Terraço Itália, ícone paulistano cravado entre as avenidas São Luís e Ipiranga. Simpática e bem-humorada, a cantora que foi a primeira a gravar uma música de Chico Buarque (“Marcha para um dia de sol, 1965) fez questão de afirmar que sua carreira, do alto de seus 50 anos de estrada, está a todo vapor. Sua disposição juvenil e o disco com que me presenteou — Movimento circular, de 2005 -, comprovavam o que dizia.

Para fechar o encontro, Maricenne quis pagar a conta. Seria como ser espectador de um espetáculo e ainda receber cachê. “Nada feito, Maricenne!” (por Fernando Angulo)

>> Nos palcos desde 1958 e reconhecidos por seu ecletismo, a paulista de Cruzeiro Maricenne Costa (1938) cantou, nos anos 1960, bossa nova em São Paulo e no exterior, atuoso em teatro nos anos 1970 e 1980, gravou MPB, maxixes e polcas, misturou rock, punk e jazz. Lançou, em 2009, um CD de bossa nova com autores paulistas.

A cantora Maricenne Costa no Edifício Itália. Por Fernando Angulo.

FICHA TÉCNICA

Idealização e realização. Grupo de Fotografia do Gafieiras
Coordenação geral. Ricardo Tacioli
Produção executiva. Andreia do Nascimento
Fotógrafos. Ernesto Rodrigues, Fernando Angulo, Jefferson Dias, João Correia Filho, Otavio Valle, Renato Nascimento e Ricardo Ferreira
Ilustrador. Daniel Almeida
Arte-finalista. Fernando de Almeida
Textos institucionais. Ricardo Tacioli
Revisão de textos. Rogério Trentini
Parceiros (2009). Cineboteco, TVO e Metrô de São Paulo
Agradecimentos. Beto Previero, Biancamaria Binazzi (Rádio Cultura AM), Brígida Rodrigues (Programa Click, da allTV), cabeleireira da Alaíde Costa, Centro Cultural Banco do Brasil/RJ, Clara Lobo (Galeria Olido), Claudia Silva (TV Minuto), Claudio (amigo da Claudette Soares), Clodoaldo (Mairiporã Produções), Daniel Almeida, Daniel D’Angelo, Fábio Ribeiro (TVO), Edu Silva (Lua Music), Fernando Costa Netto (CineBoteco), Fernando de Almeida, Gravadora Revivendo, Herminio Bello de Carvalho, Jandira (sobrinha da Carmélia Alves), Laura Santos (Elemídia), Leila (Espaço Unibanco de Cinema), Luciene Caruso, Lívia Mannini, Manoel Carlos Jr., Marco Bailão, Maria (maquiadora da Inezita Barroso), Miriam Souza, Moisés Santana, Nelson Provença, Norma Bengell, Palmieri (Parque da Água Branca), Patrícia Cosme (Programa Click, da allTV), Paulo Félix (Gato Negro), Pizzaria Veridiana, Rádio Record/AM, Raquel Ferreira, Ricardo Cravo Albin, Rogério Trentini, Sérgio Seabra, Tatiana Engelbrecht, Termas Chuí, Thiago Marques, Thomas Bentes (TVO), TV Cultura, Vanderlei Lopes, Vera Camillo (Lua Music) e ao carinho, compreensão e dedicação de todas as artistas fotografadas.

Grupo de Fotografia do Gafieiras

Fotografar parte dos protagonistas da música brasileira e divulgar das maneiras mais diversas, originais e acessíveis. Este é o binômio que instigou o Gafieiras a convidar fotógrafos de formações, atuações e olhares distintos para compor o Seletor. Antes, uma ressalva: como saiu da maternidade há poucas semanas, o grupo ainda está se entendendo sobre qual nome levará para a pia batismal.

Filiado ao compromisso editorial das Gafieiras e pautado em ensaios, retratos, coberturas/reportagens fotográficas, o Seletor registra intérpretes, instrumentistas, compositores e pessoas que, de alguma forma, se relacionam com a música no Brasil, independentemente do gênero ou época.

O objetivo do grupo é gerar um acervo iconográfico de relevância estética e editorial capaz de mostrar uma variedade musical do país, como também encontrar novas formas de difusão — além das tradicionais exposições em galerias e publicação em jornais, revistas e sites.

OS FOTÓGRAFOS

>> Ernesto Rodrigues é formado em Jornalismo (UNESP). Começou sua carreira como repórter-fotográfico em 1987 no interior de São Paulo. Chegou em 1999 na capital paulista para trabalhar no jornal Folha de S. Paulo. Paralelo ao fotojornalismo, desenvolve um projeto fotografando os romeiros de Padre Cícero em Juazeiro do Norte (CE).

>> Fernando Angulo formou-se em Design Gráfico (UNESP) e projetou fotografia no SENAC (Ribeirão Preto/SP). Foi professor de Metodologia Visual na Universidade de França e, em São Paulo, trabalha em seu próprio estúdio de fotografia e design gráfico. Desde 2003 desenvolve um trabalho autoral preto-e-branco em médio formato, de livre pesquisa em fotografia de rua, envolvendo viagens pelo Brasil.

>> Jefferson Dias, bacharel em Artes Visuais, trabalha com fotografia há seis anos e fotografa há quatro. Tem experiência em retrato, still e fotojornalismo, além de pós-produção, finalização de imagens e gerenciamento gráfico. Prestou serviços a Cia de Foto, Itaú Cultural, Revista da Indústria (FIESP), Revista TAM, Época Negócios, Valor Econômico, entre outros.

>> João Correia Filho é formado em Jornalismo e desde 1997 atua como fotojornalista. Atualmente é colaborador em revistas importantes no Brasil e no exterior, como National Geographic, Horizonte Geográfico, Gula, Revista do Brasil, Planeta, Língua Portuguesa e Grande Reportagem. Paralelo a isso, realiza trabalho fotográfico a partir da Literatura, principalmente sobre a obra do escritor João Guimarães Rosa.

>> Otávio Valle é formado em Jornalismo (UNESP) e há 15 anos atua como repórter-fotográfico. Também trabalhou como freelancer no interior do estado para veículos como O Estado de S. Paulo, Folha de São Paulo, Gazeta Mercantil, Época e O Globo. Lecionado fotojornalismo na UNESP Bauru (1997/2000), USC — Bauru (1999/2000) e Unorp — Rio Preto (2003). Trabalha como jornalista freelancer em São Paulo desde 2007.

>> Renato Nascimento é fotógrafo e colaborador na reestruturação e digitalização do acervo visual da TV Cultura. Como fotógrafo, iniciou sua carreira nessa mesma empresa em 2003, registrando toda a programação e musical para divulgação e também para o acervo do Núcleo de Documentação da TV. Atua também como fotógrafo de espetáculos com os grupos teatrais Letras em Cena e Diálogos Sonoros. Participou na produção fotográfica do livro Fernando Faro — Baixo.

>> Ricardo Ferreira foi professor de fotografia no SESC Pompeia (2001/02) e no SENAC (2000/08). Atua como fotógrafo freelancer, laboratório preto-e-branco e pesquisador de processos fotográficos analógicos e digitais. Participou dos livros Embu (2003), Cubatão (2005) e das observações individuais Velocidade (1999) e Retratos (2000). É autor do livro Na estrada, um ensaio fotográfico sobre a vida dos caminhoneiros nas estradas no Estado de São Paulo.

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